Introdução

A hermenêutica é uma disciplina que tem sido alvo de constantes e relevantes estudos nas últimas décadas. Variados métodos hermenêuticos, cada qual com seus pressupostos, têm sido enfatizados e empregados por diversos estudiosos da Bíblia e de outros textos antigos e históricos com a intenção de, em última análise, prover ferramentas para que a “verdade” seja descoberta.

O conceito de “verdade”, no que se refere à natureza da Escritura, pode, entretanto,  variar drasticamente de indivíduo para indivíduo. Há os que se aproximam da Bíblia considerando sua inspiração divina, crendo ser ela a Palavra de Deus e, nesta direção, propõem métodos para o seu estudo que não ignoram a natureza divina do texto bíblico. Por outro lado, há estudiosos que, embora desejem genuinamente conhecer a “verdade”, creem que ela não pode ser encontrada ou que está parcialmente presente na Bíblia, excluindo desta o seu elemento revelatório. Estes últimos propõem métodos hermenêuticos que, embora bem estruturados, partem de premissas que subtraem o caráter sobrenatural intrínseco às Sagradas Escrituras.

Desta feita, podemos notar a abundância da produção teológica no campo da hermenêutica bem como a grande oferta de métodos, ideias e propostas de abordagem para o estudo do texto sagrado. No entanto, como dissemos, cada método que nos foi exposto nas últimas décadas parte de premissas distintas, as quais devem necessariamente ser analisadas para que nós, igualmente interessados na apropriação da verdade, possamos determinar o nível de validade de cada método e concluir até que ponto cada um pode ser confiável para quem estuda as Escrituras tendo-as como inspiradas, normativas e autoritárias.

Mais sobre isso será esclarecido nesta disciplina, mas, por hora, precisamos definir a hermenêutica e sua proposta de trabalho. Em outras palavras, é necessário indagarmos o que é hermenêutica e a que ela se propõe. Tais conhecimentos são pré-requisitos para adentrarmos de forma consistente neste rico campo de estudo.

A palavra hermenêutica deriva do verbo grego hermeneuo, que significa “interpretar”, e tem sua origem no nome próprio Hermes, que, segundo a mitologia grega, era um mensageiro dos deuses encarregado de interpretar e transmitir suas mensagens aos mortais. Portanto, a hermenêutica é uma disciplina que lida com os princípios de interpretação. Para fixação, uma possível definição de hermenêutica pode ser: ciência e arte que nos ensina os princípios, as leis e os métodos de interpretação de textos.

A hermenêutica pode ser aplicada tanto a textos seculares quanto a textos bíblicos, mas, no geral (e por motivos especiais dos quais falaremos mais adiante), a hermenêutica se faz realmente necessária quando precisamos estudar textos antigos, compostos em épocas diferentes das que estamos inseridos. Para todos os efeitos, a partir deste momento, quando nos referirmos à hermenêutica, o faremos visando sua aplicação no estudo da Bíblia, ou seja, trataremos da hermenêutica bíblica. Ademais, cabe aqui um paralelo com a exegese, por ser esta uma disciplina tão próxima da hermenêutica; com efeito, ligada a ela. Essencialmente, são matérias diferentes, mas, na prática, acabam se fundindo em apenas uma atividade: a de interpretar textos.

O termo exegese significa “trazer para fora” e refere-se ao processo de aproximação do texto bíblico por parte do intérprete a fim de trazer à tona sua mensagem. A relação da exegese com a hermenêutica, a grosso modo, caracteriza-se pelo fato de que, com a exegese, a função do intérprete é valer-se de diversos recursos para interpretar o texto e dele extrair sua mensagem. Nesse processo, o papel da hermenêutica é fundamentar os princípios interpretativos nos quais o exegeta se apoiará para a realização da sua tarefa. Simplificando, a exegese é a extração do sentido de determinado texto, extração que se dá mediante princípios estudados e desenvolvidos na hermenêutica. Em suma, hermenêutica é o estudo dos princípios de interpretação enquanto a exegese é a aplicação desses princípios. Tal distinção conceitual é uma prerrogativa dos tempos modernos. Todavia, o fato é que ambas as ciências ligam-se de tal modo na tarefa interpretativa que, muitas vezes, na prática, são indistinguíveis, ocorrendo ao mesmo tempo.

Há ainda outro termo relacionado à hermenêutica e à exegese: o vocábulo “eixegese”. O termo eixegese, ou seja, “levar para dentro”, é o ato de se ler determinado texto trazendo indiscriminadamente para a leitura pré-concepções particulares que, fatalmente, influenciarão na extração da verdade presente no texto. Obviamente uma abordagem eixegética de qualquer texto influencia drasticamente o seu sentido e faz com que, do texto, se extraia uma mensagem que não lhe é natural. Imagine, assim, os danos que uma aproximação eixegética da Bíblia pode causar na teologia ortodoxa. Infelizmente, a eixegese na leitura bíblica sempre ocorreu, conforme registra a história da teologia, e continua ocorrendo. Toda vez que qualquer pessoa abordar a Bíblia de modo displicente ou se abstendo de sadios princípios hermenêuticos, uma extração distorcida da mensagem bíblica certamente ocorrerá.

Finalmente, a despeito dessas definições introdutórias que envolvem a hermenêutica, precisamos, neste ponto, nos perguntar: para que a hermenêutica? Qual sua função? Por que é necessário interpretar? A Bíblia, por trazer a mensagem de Deus para a humanidade, não deveria ser corretamente compreendida sem a necessidade de preparo algum? Estas são questões de extrema importância. De fato, são tão relevantes que o primeiro capítulo, o que se segue a esta introdução, tratará delas mais profundamente. Portanto, iniciemos o estudo da hermenêutica abordando a natureza de seu trabalho.