Introdução

Breve histórico da disciplina e pressupostos fundamentais

Soteriologia é uma palavra de origem grega cujo sentido é “doutrina da salvação (soterios, “salvação”; logia, “doutrina/discurso/palavra”). Na história, a soteriologia, como disciplina teológica especificamente designada, é relativamente recente dentro do pensamento cristão. Tanto durante a Era Patrística, em toda sua extensão, como durante a Escolástica, a doutrina cristã da redenção era estudada sob o ponto de vista da cristologia, em associação com a antropologia bíblica, na qual se embutia a hamartiologia. A obra de Jesus, abordada pelos teólogos e mestres em um âmbito essencialmente cristológico, era sistematizada de modo a fornecer, ela mesma, uma explicação panorâmica acerca da redenção da humanidade. E o conhecimento sobre a redenção, compreendida à luz da natureza humana (que, por sua vez, era explicada a partir de suas origens), era associado ao entendimento coligido sobre o homem. Assim, formava-se um projeto, um modelo explicativo que se propunha a expor o modo como a obra do Messias redimiria a humanidade caída.

Com efeito, a doutrina da salvação especificamente estruturada surgiu no momento histórico da Reforma Protestante, no século XVI. O fato de o protestantismo incidir, sobretudo, nas questões doutrinárias do Cristianismo Católico Romano, e mais precisamente naquelas ligadas à relação entre Deus e o homem, fez com que os teólogos reformadores sentissem a necessidade de se aprofundar mais nas questões soteriológicas; ao ponto de, aos poucos, formularem uma doutrina da salvação à parte de outras disciplinas, ainda que indissociavelmente ligada a elas.

A soteriologia, no entanto, nunca deixou de se relacionar profundamente com as três disciplinas já mencionadas: a cristologia, a antropologia e a hamartiologia. Por razões bastante óbvias, mas que serão sublinhadas de qualquer maneira; a doutrina da salvação pressupõe duas verdades preciosamente fundamentais: a fatualidade de Deus como criador e animador do homem, bem como a fonte de toda a felicidade e plenitude humanas; e a necessidade humana de se relacionar com seu criador, fatalmente frustrada pela distância imposta através da emergência do pecado na ordem criada. Por inferência, pressupõe-se, indiscutivelmente, a veracidade e a inerrância da Escritura, fonte de toda a dogmática em torno dos mencionados pressupostos. Desse modo, o foco da soteriologia é entender a natureza da obra salvífica operada por Cristo, a forma com a qual esta obra é aplicada àqueles que nele confiam e, finalmente, é também compreender as consequências, para os humanos, do resgate proposto por Deus no Filho.

Antes, porém, de prosseguirmos com esta doutrina da salvação, vale destacar um comentário que vislumbre a relevância desta matéria numa grade curricular teológica. Ademais, é preciso mostrar que a compreensão sobre a salvação, além de repousar na Bíblia como instância última, se estabelece em modelos de pensamento (em teologias, no sentido de doutrinas) muitas vezes diferentes e conflitantes em determinados pontos. Na progressividade dos capítulos, tais acepções receberão a devida atenção.

Importância e diversidade teológica

A doutrina da salvação não pode ter sua importância exaltada o suficiente. Primeiramente, ela compreende o próprio sentido do cristianismo. Propondo-se a examinar a obra de Cristo em sua aplicação ao homem, a soteriologia apresenta o conhecimento central da mensagem do Evangelho (o de que Deus morreu pelos pecadores – Rm 5.8) exposto e analisado. Para um verdadeiro discípulo de Cristo, tal conhecimento representa um tesouro de informações e fonte de reflexões que deverá resultar em sólido crescimento, tanto individual quanto comunitário, na medida em que ele se voluntariar a compartilhar a mensagem de Deus para com as pessoas.

Em segundo lugar, uma correta evangelização só poderá ocorrer na medida em que o cristão compreender, ao menos, o centro dessa doutrina (este “centro” será chamado por nós, daqui em diante, de querigma cristão, ou simplesmente querigma). Portanto, a doutrina da salvação tem sérias implicações em diversas áreas do campo teológico, como a missiologia, por exemplo.

Em terceiro, a soteriologia, embora não se proponha realmente a isso, acaba por ser uma síntese dos principais conhecimentos das doutrinas de Cristo, do homem e do pecado, pondo-as em íntima associação e fixando uma conclusão de natureza híbrida sobre tais matérias; algo extremamente valioso para uma mente teológica, assim como deve ser a dos estudantes.

Dada a complexidade da doutrina da salvação e dos processos hermenêuticos e teológicos envolvidos na abordagem sistemática da Escritura, a disciplina em questão se apresenta a nós em certo número de vias teológicas através das quais é possível concebê-la, conforme mencionamos previamente. Esta é uma verdade às vezes pouco compreendida: as doutrinas cristãs têm sua fonte última na Bíblia Sagrada, porém, a partir das escrituras, foram construídas e estruturadas pelas mentes teológicas da Igreja. Por isso, conquanto os principais ramos teológicos do cristianismo apresentem as mesmas conclusões acerca das principais doutrinas e fundamentos do pensamento cristão (algo que unifica os diferentes grupos e os caracteriza como “irmãos em Cristo”), há uma grande diversidade de pensamento no que concerne a tópicos mais tangenciais do querigma. Em outras palavras, todos os grupos genuinamente cristãos precisam concordar em pontos básicos da revelação e da tradição cristã (na proporção em que a tradição reflita com fidelidade o conhecimento revelado na Escritura), mas podem discordar em pontos não tão fundamentais ou periféricos da teologia. Na doutrina da salvação, este fato não se mostra ausente. No decorrer da matéria procuraremos expor os pensamentos das principais tradições teológicas do cristianismo sobre os pontos centrais da soteriologia.

Entretanto, desde já o aluno precisa assumir o compromisso irênico (conciliatório) de entender as conclusões dos diferentes grupos e respeitá-las na qualidade de modelos explicativos que são. Ao mesmo tempo, espera-se do teólogo que ele mesmo aprofunde seus estudos ao ponto de discernir qual das teologias propostas melhor se adequa à sua própria compreensão da obra salvífica. Muitas vezes, este compromisso teológico faz com que tomemos dramáticas mudanças de posição teológica em nossas vidas. Outras vezes, isto não ocorre. Porém, em qualquer uma das situações, o aluno precisa assumir uma posição verdadeiramente investigativa, respeitosa e, acima de tudo, cristã.

Assim, lancemo-nos ao estudo da soteriologia, disciplina indispensável em um bom curso teológico, e igualmente imprescindível à compreensão e à maturidade devocional do cristão.