Centro de Ensino Teológico Saber e Fé

A contextualização do Evangelho

Hoje, nos círculos evangélicos, muito se fala em missiologia. A consciência das necessidades missiológicas, bem como de seus métodos, estão tornando-se cada vez mais patentes entre os cristãos dispostos a cumprir o chamado de Cristo (Mt 28.19). Entretanto, vê-se frequentemente que a própria instituição eclesiástica não coloca em prática seus conhecimentos sobre a comunicação do evangelho, permitindo, ingenuamente, que a mensagem chegue ao ouvinte carregada de pressupostos culturais oriundos do grupo missionário. É particularmente triste o fato de que, ao serem inqueridas a este respeito, as igrejas sequer se dão conta de sua lamentável performance evangelística. Muitos grupos não estão conseguindo aplicar os conceitos de missão à sua realidade e acabam assumindo equivocadamente que tais métodos somente se fazem necessários em missões evangelísticas estrangeiras. Na verdade, os princípios missiológicos podem e devem ser aplicados num contexto geográfico imediatamente próximo, como, por exemplo, num escritório, ou numa escola, enfim, em qualquer ocasião na qual o não-alcançado pareça, em qualquer aspecto, diferente do evangelizador. Logo, os princípios missiológicos residem na comunicação. É sobre esses princípios que pretendemos tratar nesta breve reflexão.

Vivemos numa época em que as pessoas estão cada vez mais afastadas umas das outras, a despeito da factual funcionalidade das ferramentas de comunicação. Apesar dos nossos esforços em conectar e integrar o ser humano em toda a esfera de nosso planeta, os meios de comunicação disponíveis não estão sendo eficientes para o estabelecimento de entendimento mútuo e isso deve nos fazer pensar em como aquela que é a mais importante das mensagens, o evangelho, está sendo recebida e entendida pelo interlocutor. Em suma, ironicamente, não está havendo compreensão na mesma proporção em que há comunicação. Portanto, a fundamental preocupação do cristão atual não devem ser as sinuosidades das vias comunicativas, mas a forma do diálogo. Esta matéria disserta justamente sobre este ponto.

Entre os pensadores cristãos atuais é razoável o assentimento de que uma das tarefas necessárias ao labor teológico é a de tradução. Não nos referimos ao estudo das disciplinas da linguística, que de fato precisam ser assimiladas e abordadas pelo teólogo, mas referimo-nos a outro tipo de tradução: a contextualização. Dentre as muitas tarefas nas quais o teólogo precisa aprofundar-se em conhecimento, a contextualização carrega uma importância vital à comunicação do evangelho e, se esta comunicação é parte integrante do serviço cristão, ela precisa ser pensada e cautelosamente desenvolvida para que alcance seu objetivo.

Nas páginas das Escrituras, a mensagem da graça de Deus traz consigo o invólucro histórico-cultural no qual foi registrada. Um dos benefícios do pensamento teológico iluminista foi o de “patentear” a ideia de que a Bíblia foi escrita em épocas e lugares específicos e, inevitavelmente, seus autores – ainda que movidos pelo Espírito de Deus – registraram nas páginas sagradas as impressões de seu contexto temporal e geográfico. Não existem pré-requisitos acadêmicos para percebermos que as narrativas bíblicas remetem a locais e épocas muito distantes. Os meios de transporte eram diferentes, assim como as estradas. As roupas eram diferentes, as línguas eram diferentes, tudo era diferente e a arqueologia bíblica nos dá prova disso. Contudo, o mais importante, o fator que mais influencia a determinação da disparidade conceitual entre os autores sagrados e nós, é a sua forma de pensar, a sua filosofia. Não é somente o fato de os homens antigos escreverem seus pensamentos em rolos de pergaminho enquanto registramos nossas ideias em tablets, mas as diferenças de conceitos e estruturas de pensamento que evidenciam a dicotomia intertemporal entre o antigo e o atual é que nos trazem um problema especial na hora de interpretarmos as Escrituras.

Parece lógico que, assim como o nosso contexto cronológico e geográfico influencia nossas formas de expressão e comunicação, as particulares épocas e lugares em que foram escritos os livros bíblicos influenciaram seus autores. Por este motivo, ao estudarmos ou lermos a Palavra de Deus, é necessário que façamos uma distinção metodológica entre forma e conteúdo, entre o contexto e a forma como a mensagem está sendo apresentada e a própria mensagem.

A maioria dos estudiosos modernos que conseguiu driblar uma das armadilhas da ingenuidade entendeu esta verdade primordial. Aos poucos, algumas disciplinas das ciências humanas como a filosofia, a história geral e a sociologia estão sendo inseridas nas matrizes curriculares das faculdades e seminários de teologia que perceberam o valor inestimável de tais esferas de conhecimento para o entendimento e a transmissão da mensagem evangélica.

Entretanto, não obstante a essencialidade da contextualização para a construção teológica, algumas objeções são lançadas contra esta necessidade. A mais comum é a alegação de que a contextualização da mensagem bíblica e, evidentemente, de sua forma de pregação, conduz ao sincretismo, ou seja, produz um ambiente propício ao abandono da sã doutrina (leia: Temos o direito de julgar as religiões?)pelo mensageiro em favor da acepção desguardada da cultura que está sendo evangelizada.

Obviamente, esta proposição é pobre e facilmente refutada. A depravação da natureza humana está tão susceptível ao sincretismo quanto a qualquer outra forma de pecado. Além disso, só entendemos uma mensagem quando o seu “porta-voz” fala a nossa língua, tanto em matéria de idioma quanto em matéria de identificação cultural. Mas podemos encontrar na própria Palavra de Deus algo que comprove este fato?

Sem dúvida, os princípios da necessidade de contextualização podem ser descobertos na própria Bíblia. No livro de Atos, um dos que nos trazem as raízes da missiologia, Lucas menciona que a igreja “contava com a simpatia de todo o povo” (At 2.47). Outro exemplo está no fato de o apóstolo Paulo ter entendido com muita propriedade que, para alcançar o interlocutor, ele teria de tornar-se “igual” a este (1Co 9.20-22).

Muito mais poderia ser dito a respeito da tradução cultural para o entendimento e pregação do evangelho. Também, muitas outras objeções poderiam ser apresentadas a esta necessidade. Todavia, se o próprio Deus valeu-se da contextualização para trazer sua mensagem até nós, humanos, certamente devemos imitá-lo submetendo-nos à cultura receptora com amor e espírito vicário para a transmissão da mensagem salvadora (leia: Vivendo depois de Cristo?).

Assim o fez nosso Senhor e assim devemos proceder. Se o evangelho (e não a cultura) é o “poder de Deus para a salvação de todo o que crê” (Rm 1.16), o engajamento por parte do teólogo na contextualização da mensagem evangélica é imperativo. É necessário que entendamos o mundo no qual foram escritas as laudas bíblicas, tanto quanto o nosso próprio mundo com seus problemas, necessidades imediatas, forma de pensamento e demais peculiaridades. Somente assim estaremos aptos a discernir a transitoriedade da cultura da natureza imutável e vivificante do evangelho, ensinando-o de maneira pura e simples como ele é.

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